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Os olhos vagam pelo quarto. As mãos da mulher sobem e descem pelo ventre em movimentos contínuos e desordenados. As coxas abrem-se ao ritmo de camaleões sem idade. A cama range. Os lençóis dobram-se, tomam a forma de serpentes na muda interminável, de colinas em planícies do fim dos tempos, de vales pré-históricos e de cordilheiras da idade dos dinossauros. A dor evolui. A mulher transpira. Morde os lábios. Sufoca o grito. Não pode gritar, tem que aguentar. Cerra os dentes, agarra os lençóis com os dedos empapados de suor que escorre pelo corpo como formigas emergindo dos casulos, desses poros que crescem e tomam a dimensão de grãos de milho esparsos em campos sem dono. As formigas percorrem o corpo, sobem e descem pelas coxas, trepam as colinas, atingem o cocuruto, descem, dançam, brincam e atiram-se ao rosto.
Fecha os olhos. Suporta a dor, mas não pode gritar. Tem que aguentar. Dobra as pernas, estende as mãos, põese de lado, volta a olhar o tecto, cerra os dentes, agarra lençóis, puxa-os à cara, tapa-se. As formigas desaparecem misteriosamente e os poros voltam a tomar a dimensão de todos os tempos, vertendo incessantemente o suor que vai caindo em gotas enormes sobre os lençóis. Ela sente o som, o baque contínuo, perpétuo. E imagina, imagina tudo. Vê a menina da infância brincando aí no campo, alheia a tudo até ao momento em que o silvo mortal da serpente se aproxima, veloz, mortífera. A menina pára, não consegue mexer-se, está paralisada, e nada ouve a não ser o baque contínuo, incessante, do coração. Depois é a menina crescida, a adolescente dos seios túrgidos, aproximar-se do namorado naquele dia fatal de todas as coisas do mundo nos segundos inolvidáveis. E o baque, o som de sempre, a incomodá-la a elevar-se, a sobrepor-se a todos os sonhos, a encher o quarto, a sufocá-la, a fazê-la morder os lábios, a levitá-la do mundo das coisas e a atirá-la do mundo das coisas e atirá-la ao espaço onde tudo se sente e nada consegue contar.
Não pensa e foge da imagem, tenta pensar na mãe. Não consegue. A dor nada deixa imaginar. Abre os olhos. Volta à realidade do quarto. Olha para os lençóis empapados de suor: fios de água caem no parquet, como que vindos de cascatas doentias e sonolentas. Tenta soerguer-se. Os dedos vergam, espalmam-se nos lençóis. Os cotovelos abrem-se sulcos no colchão, e o suor vai-se acumulando. A dor cresce. Cerra os dentes. Não consegue mais.
- O que foi? – pergunta o marido, preocupado, ao entrar no quarto.
- Nada, João. Não foi nada.
- Deixa-me só, João.
- Está bem, querida.
O marido sai. Fecha a porta. Ela olha para a janela nua. Vê o dia a tornar-se triste. Ouve o ruído dos carros e motorizadas passando. As pessoas conversam. Riem. E ela ali, naquele quarto simples, vá olhando para a cama, para o colchão roto, sujo, para os lençóis empapados de suor, para o guarda-roupa sem cabides, para as paredes nuas, para a lâmpada fundida, para as teias de aranha e para a sua solidão, enquanto espera que as horas passem, sentindo o suor nas axilas, nas coxas, nas pernas, nos braços, nas mãos, no corpo inteiro. As horas passam. A luz da avenida vai entrando no quarto sem cortinas em fiados leves e contínuos. E ela olha, sente-se calma. Leva as mãos à cabeça, os dedos percorrem as lianas que se cruzam, emaranhando-se. A mão direita limpa o rosto cheio de suor. O marido entra, pergunta à mulher se pode meter a lâmpada da sala no quarto. Ela diz que não, mas pede uma vela e um copo de água. O marido sai. Ouvem-se passos no corredor que leva à cozinha. A torneira verte água. Coloca a vela sobre a cadeira e entrega o copo à mulher.
- Já te sentes bem?
- Não me faças perguntas, João. Deixa-me só!
Ao sair o marido sente os sapatos a escorregarem. O chão estava coberto de suor. Um mar de suor. Lagos de suor. O quarto transforma-se num mar de suor que se ligava aos lagos por canais sem margens. A luz da vela reflectia-se nas águas onde filhas de baratas tentavam salvar-se nadando desordenadamente.
- Queres que limpe o chão?
- Não me chateies, João.
Olha para as paredes. Duas baratas trepam as paredes. Fecha os olhos. É a primeira e última vez, mãe. Não mais! Não quero mais! Não posso mais! Não aguento, mãe!
- Vamos!
- Já não aguento. Que horas são?
- Vinte e duas.
- Traz-me o vestido azul.
O marido ajuda-a a sair da cama e a vestir-se. Saem do quarto. O marido fecha a porta. Atingem a varanda. A mulher vomita. A luz do corredor concentra-se no vómito verde. O marido ampara-a, tira um lenço do bolso, limpa os lábios da mulher. Depois descem os dois andares que os levam à rua. Um vizinho aproxima o carro. Ela senta-se no banco de trás. Nada vê a não ser corredores extensos, paredes brancas azuis, ferros, lâmpadas. Ouve gritos, choros. Tudo se modifica. Algo se aproxima. Névoa. Gritos. Aranhas. Tarântulas. Répteis. Paredes brancas, azuis. Gritos. Choros. Ferros. Camas. Batas. Outro mundo. A senhora teve uma criança bonita – ouve. Uma voz distante aproxima-se. Começa a tomar consciência. Vê camas com lençóis. Vê batas brancas e azuis. Vê mulheres deitadas. Vê o dia a nascer. Os olhos tomam a dimensão do espanto. Está viva. Olha para a enfermeira. Uma negra atarracada, gorda, sorridente.
- Teve um rapaz, senhora.
- E o prémio?
- O prémio?.. Qual prémio?
- O prémio. O…
- Ah! O enxoval para crianças… Não. A senhora não ganhou. O prémio é para as crianças que nasceram nas primeiras horas do dia 1 de Junho. O seu filho nasceu às onze horas e cinquenta e cinco minutos…
As imagens começam a fugir e a transfigurarem-se. O tempo perdido… A cabeça enterra-se na almofada. O mundo começa a girar, a mudar de posição. É uma criança bonita, ouve uma voz distante, longínqua… As lágrimas saltam dos olhos, correm pelos lençóis, soluça, desmaia.
Ungulani Ba Ka Khosa
(Adaptado)
Como se classifica o texto de seu exame quanto à tipologia?
Expositivo/argumentativo
Narrativo
Expositivo/explicativo
Notícia
Esta questão pertece ao exame:
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